Autora: Nádia Teixeira
O conceito de bem digital, ainda pouco explorado no ordenamento jurídico brasileiro, pode ser definido, de acordo com Bruno Zampier, professor de Direito Civil e autor da obra “Bens digitais: Cybercultura; Redes Sociais; E-mails; Músicas; Livros; Milhas Aéreas; Moedas Virtuais”, como sendo aqueles “bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenha ou não conteúdo econômico.”
Diante disso, podem ser considerados bens digitais todas aquelas informações e dados que, em sentido geral, estão disponíveis de forma online, podendo ou não ter algum conteúdo econômico. Assim, são exemplos de bens digitais: contas de redes sociais, nuvens criadas para o armazenamento de informações, e-mails trocados, listas de contatos, fotos e vídeos publicados, manifestações de opinião e de vontade anunciadas em meio digital, entre outros inúmeros exemplos com os quais a convivência diária é comum.
Percebe-se, com o Código Civil vigente, bem como pela situação jurídica atual, um enorme esforço do autor acima referido para a delineação de tal conceito, vez que tal recorte jurídico, direcionado especificamente aos bens digitais, não existe no sistema jurídico brasileiro atual. Isso porque o Código Civil de 2002, bem como a doutrina civilista mais tradicional, não traz a classificação de bens digitais como existente no ordenamento jurídico.
Entretanto, considerando a volatilidade da sociedade contemporânea, que está em constante modificação e alteração no plano fático, faz-se necessário, também, que mudanças no plano jurídico sejam implementadas. Com o uso das denominadas TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) de forma habitual por boa parte da sociedade, caracterizando a vigência da sociedade da informação ou do conhecimento, na qual há a existência de hiperconexão, novas formas de relações pessoais, que têm impacto sobre o plano jurídico, passaram a existir.
Dessa forma, apesar de não estarem, ainda, positivadas no direito brasileiro, as questões relativas aos bens digitais têm extrema relevância para o mundo jurídico contemporâneo. De maneira corriqueira, pode-se pensar, por exemplo, no caso de alguém, com milhares ou milhões de seguidores, que utiliza suas redes sociais como uma forma de divulgação de seu trabalho, objetivando que os possíveis clientes sejam direcionados ao seu perfil e que efetuem a compra de um produto ou serviço ofertado.
Todavia, sem que tenha havido qualquer ato que vá de desencontro às diretrizes e normas da comunidade, a plataforma digital resolve suspender a conta, alegando que supostamente teria havido violação, fazendo com que a loja virtual tenha deixado de estar no ar por alguns dias.
Após procedimento de análise, a plataforma verifica que, de fato, não houve a ocorrência de qualquer atitude que pudesse ensejar a penalização aplicada, e torna a página novamente online. Entretanto, durante o período em que o perfil esteve indisponível, o seu titular sofreu diversos prejuízos, uma vez que teve cerceado o seu direito de colocar os produtos ou serviços à venda e, com isso, foi impedido de obter retorno financeiro.
Não raras vezes, percebem-se casos de pessoas que utilizam as redes sociais como sua única fonte de renda e de trabalho. Pessoas que dedicam sua vida e seu tempo alimentando suas plataformas digitais com conteúdo de diversas espécies, obtendo retorno financeiro por suas atividades.
No caso do exemplo acima, não é difícil perceber que, de fato, houve dano para o titular da conta, uma vez que ocorreu a privação do direito de exercer seu trabalho e de obter retorno financeiro pelas atividades realizadas. Dessa forma, há que se falar em indenização por danos materiais e compensação por danos morais, desde que preenchidos os demais requisitos exigidos para esses institutos.
Apesar disso, como visto anteriormente, os bens digitais não se restringem àqueles que têm caráter econômico. Existem bens digitais que não possuem nenhum retorno financeiro imediato, mas que, do mesmo modo, devem merecer proteção jurídica. Imagine, por exemplo, a situação de uma pessoa que falece e deixa uma nuvem, carregada de fotos e vídeos que registraram momentos importantes e únicos de sua vida.
Embora não possuam caráter patrimonial, é inegável que tais dados se configuram como bens digitais da pessoa falecida, por conterem registros que jamais poderão ser novamente obtidos. Assim, os herdeiros poderiam ter direito de acessar a conta para poderem visualizar e guardar como recordação os bens digitais produzidos em vida pelo finado.
Tais questões são tão relevantes para o contexto atual que, de maneira acertada, o anteprojeto de lei para revisão e atualização do Código Civil cria um livro específico, denominado “LIVRO VI – Do Direito Civil Digital”, que regulamenta as relações jurídicas ocorridas no âmbito digital, delimitando diversos aspectos importantes originados dessa situação existente.
A prestação de serviços digitais também é regulamentada, uma vez que são criadas regras para os criadores de conteúdo no ambiente virtual, chamados de prestadores de serviços digitais, e para as plataformas, de modo que sejam abrangidos por direitos e deveres. Além disso, a partir do Art. 1.791-A, é, finalmente, delimitado o conceito jurídico de bem digital, no parágrafo primeiro do referido artigo, bem como são delineados procedimentos para a transmissão pós-morte desses bens.
O fato de tais assuntos estarem incluídos no projeto de reforma do Código Civil ilustra a importância e a relevância do âmbito digital para o mundo contemporâneo e a consequente necessidade de regulamentação do direito digital no ordenamento jurídico brasileiro.
Isso porque, em síntese, diversas são as possibilidades de conflitos de interesses que podem ocorrer no mundo prático em decorrência de situações relacionadas ao meio digital, que estão presentes no cotidiano geral. Dessa forma, é necessário que haja um regulamento normativo específico e direcionado a essas situações, com o objetivo de permitir que seja dado um tratamento adequado aos problemas existentes, a fim de promover justiça.
Entende-se, na atualidade, que os dados existentes em meio online não são apenas manifestações de direitos fundamentais e de direitos da personalidade, mas passam a integrar, também, a ideia de bens jurídicos, integrando o conceito de bens digitais.
Isso ocorre quando essas informações e dados são dotados de alguma utilidade, seja para o titular ou para alguém que possa se interessar. Além disso, algumas vezes, esses dados têm valor economicamente apreciável, quando se trata de bens de caráter patrimonial ou misto.
Conclui-se, portanto, que tal categoria, já existente há muito tempo no mundo fático, mas pouco discutida no mundo jurídico, deve ser estudada por juristas brasileiros, a fim de que as implicações possam ser previstas e as consequências delimitadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, com o intuito de evitar atos que possam infringir princípios básicos já existentes, como o acesso à justiça.
Por óbvio, é impossível que toda a realidade de maneira integral esteja regulamentada por normas jurídicas que regulam a atividade das partes. Entretanto, um esforço deve ser despendido no sentido de tentar, na medida do possível, adequar o ordenamento jurídico às situações de fato que existem ou possam vir a existir, em decorrência da utilização ostensiva de recursos digitais na vida cotidiana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível em: [https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf](https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao